25 agosto, 2023

A CABINE

Graças a não ter carro há dois anos, sensatez que me surpreende numa cabeça tão pouco dada a ela, percebi, tão recentemente como tardiamente, a minha profissão de sonho: camionista. Devido à superior altura dos autocarros que passei a frequentar, o lento processo de ultrapassagem aos muitos camiões por que passo na auto-estrada trouxe-me a visão de um mundo novo, tão perfeito mas também tão real como as minhas duas mãos: a do camionista na sua torre de marfim climatizada, sentado a ouvir música. E o que sinto, não tenho vergonha de o dizer, é inveja e alguma melancolia pela consciência dos anos perdidos. Ingenuamente, cheguei a acreditar ter uma profissão de sonho por ser pago para falar de coisas sobre as quais falaria com enorme prazer em cafés, se os frequentasse, ou em jantares, se jantasse. Mas fosse camionista, para além do prazer em atravessar os dias a ouvir música ou audiolivros, sabia que, ao contrário do que se passa com um professor diante de uma turma, a mercadoria chega sempre ao seu destino, onde também está sempre alguém à sua espera.