Josephine é apenas uma entre muitas mulheres que, ao virem morar para este bairro da cidade, passaram a apresentar uma dupla identificação. Escolhi-a como poderia ter escolhido Simone Ollier, que nasceu Thibault, ou Louise Bouvier, que nasceu Fages. Houve um dia, um dia específico, de um mês específico e de um ano específico em que Josephine se tornou, civilmente, Renart. Passou mesmo a fazer parte de um colectivo familiar chamado Renart, sendo com esse nome que, a partir desse dia, esperemos que feliz, passou a ser socialmente conhecida, fosse como Josephine Renart, ou com um mais formal madame Renart. Porquê então, agora que já ninguém a vai tratar por coisa nenhuma, invocar o já esquecido Burgada? Porque neste bairro não há padaria, nem mercearia, nem retrosaria, nem porteira no prédio, nem vizinhas com quem dê dois dedos de conversa na rua ou a quem vá pedir um ramo de salsa para o almoço, nem os amigos de Jean Renart que vão lá casa e que a cumprimentam com um respeitoso madame Renart. Porque invocar de novo o já esquecido Burgada, não tem que ver com um dia, um mês ou um ano específico, mas com um instante que passou a eternidade, um círculo fechado onde fim e princípio se juntam, em que a sua primordial, essencial e irredutível natureza é reposta, sobrepondo-se a uma identidade mundana construída à mercê de múltiplas contingências. Eis, pois, a sombra da velha mas sempre tão jovem Antígona com a sua lei do sangue, a pairar sobre a última morada de Josephine onde, no seu inconsciente sono eterno, reencontrou o outro interrompido no dia em que nasceu para pouco depois vir a baloiçar nos braços de monsieur Burgada. A vida, até ao dia em que se fecham os olhos pela última vez, é feita de múltiplos e infinitos olhares. Mas único é aquele em que pela primeira vez se vê o mundo.