A páginas tantas desse grande clássico sobre a imortalidade da alma que é o Fédon, obra que viria a marcar profundamente o mundo cristão, Platão, pela boca de Sócrates, explica haver almas que, devido ao peso de uma vida impura, não se conseguem libertar completamente do corpo após a sua morte, embora também já não estejam alojadas no corpo onde viveram. "Espectros umbrosos de almas" à volta dos túmulos, diz o filósofo, que aqui mais parece um poeta. Já as outras almas, lá foram para o mundo invisível, o seu mundo natural, tão natural como uma selva tropical para um papagaio ou uma paisagem gelada para um urso polar, tal como o mundo visível sê-lo-á do corpo, no qual a alma tem o azar de estar presa entre o nascimento e a morte e condenada a suportar doenças, dores, fome, sede, lavagens diárias ou desejos que só servem para a apoquentar, impedindo-a de se concentrar no que lhe é afim.
No nosso bem material e visível mundo, o grande encanto das ruínas antigas, para além do modo como o tempo foi esculpindo a pedra e os homens tantas vezes a desesculpindo, está na absoluta e silenciosa ausência dos que há muito partiram sem deixar rasto. Já invisíveis num mundo invisível, e nós carne e osso, por ali, entre pedras, perambulando por um passado onde nunca estivemos. Já o desencanto das ruínas recentes resulta da presença de almas que também há muito partiram, mas sem delas se terem libertado. Eu fui ali duas vezes. Da primeira não me lembro, a segunda, há décadas, para ver uma amiga entrar numa peça de Bernardo Santareno na qual só abria a boca para dizer uma única vez: "António!". Passo agora ali, e vejo-me a ver a peça, ou a imaginar todos os que naquela noite a viram, e o que vejo são apenas espectros, uns que já partiram de vez para se juntarem aos espectros das outras ruínas, para viverem todos felizes num mundo invisível sem a mácula do tempo, outros, ainda vivos, mas que, bastante à imagem do edifício, já não são o que foram, ou foram o que já não são. Que ainda ali está, de pé mas derrotado, com a sua alma penada, de joelhos, recusando-se a partir, quem sabe se com esperança de um dia se reanimar.