09 fevereiro, 2023

RELEGATIO


Arde com a felicidade de Herse, com brandura,

como quando se ateia fogo às ervas e às silvas,

que não produzem chama e se consomem num calor lento.

Ovídio, Metamorfoses, Livro II


Estamos habituados a usar a palavra relegar como verbo, por exemplo, relegar para segundo plano. Mas a sua origem, relegatio, é substantiva, um tipo de exílio na antiga Roma em que a pessoa, ainda assim, não perdia os seus bens e mantinha os direitos cívicos. O próprio Ovídio foi relegado para um território do império onde fica hoje a Roménia. Se olharmos para a história, o que vemos, ao longo de séculos, é a esmagadora maioria da população socialmente exilada. Verdadeiramente exilada. De facto, só uma minoria de privilegiados tinha bens que se vissem e direitos cívicos. Basta pensar em quem, ainda há pouco no início do século XX, tinha o direito de voto, à saúde, à educação. Hoje, um país de gente exilada dá cada vez mais lugar a um país de gente que se sente relegada. Com instrução, vacinada, casa própria, dois carros à porta, que janta fora sexta à noite, com direitos políticos e cívicos, mas que, precisamente por isso, cria expectativas que não satisfaz, ainda para mais assistindo de perto às bodas dos mais privilegiados, sentindo-se assim relegada. Quem arde em fogo lento com a felicidade de Herse é Aglauro, sua irmã, infectada com o vírus da inveja, cuja casa é alegoricamente apresentada por Ovídio de um modo magistral. Não é o fogo de uma floresta ou de um casa a arder, não são altas labaredas que destroem tudo em segundos. É um fogo lento, rasteiro, quase invisível, mas que, não contido, não se sabe quando pára e onde vai parar.