04 janeiro, 2023

PRINCIPIUM INDIVIDUALIDATIONIS


Sim, toda a gente sabe o que são individualidades, daí não se estranhar a aparição de quatro dezenas delas num jornal. Que sejam pois individualidades, sábios, oráculos, eminências, gurus, o que seja. Acontece que desta vez calhou-me olhar para a palavra como se fosse a primeira vez, sendo abalroado pelo eloquente elemento sufixal que faz com que estas pessoas não sejam pessoas, estes especialistas não sejam especialistas, estes indivíduos não sejam indivíduos, mas individualidades. Depois lembrei-me de também haver pessoas que se tornaram personalidades, outras ainda com o mais musculado estatuto de sumidades, talvez para não serem confundidas com um vulgar refrigerante, havendo ainda o Papa, que não é santo (o que não surpreende e até deve ficar agradecido) mas Santidade de si próprio. Com esta paixão pela sufixação ainda virá o tempo em que especialistas, da Filosofia Analítica à Gastroenterologia, passarão a especialidades, ou um prémio Nobel da Literatura deixará de ser escritor para se tornar uma escrituridade. Como será um indivíduo olhar de manhã para o espelho e ver uma individualidade? A senhora Tatcher olhava à sua volta e não via qualquer sociedade, apenas indivíduos. Quem olha e vê, como é o meu caso, um indivíduo, vê uma cara com péssimo aspecto e quiçá com mau hálito. Quem olha e vê uma individualidade vê um substantivo que, como uma sociedade, exclui uma cara, remela nos olhos e também com toda a certeza mau hálito.

Ortega y Gasset, conta a seguinte história, passada durante a celebração do jubileu de Victor Hugo, com representantes de todas as nações. Um mestre de cerimónias ia apresentando as individualidades (digamos assim) ao laureado escritor: «Monsieur le représentant de L'Angleterre» e o escritor, com ar solene: «Ah, Shakespeare!», «Monsieur le représentant de l'Espagne» e o escritor: «Ah, Cervantes!». E assim sucessivamente, até que «Monsieur le représentant de la Mésopotamie»... Ups! Fica o escritor sem saber o que dizer, atrapalhado, mas após uns segundos de suspense, a salvação: «Ah, l'Humanité!». Também a individualidade se tornou algo bem mais sublime do que um simples homem: uma ideia, um programa, uma luminosa inteligibilidade platónica. Daí ser uma espécie de versão laica e republicana de majestades e potestades. Se a categoria de indivíduo já representa uma vitória face à multidão, à massa, ao Volksgeist, a categoria de individualidade surge como sublimação do indivíduo. É por isso alguém com bastante categoria, categoria que categoriza alguém que categoricamente se destaca. É verdade que  vai desaparecendo toda a teatralidade barroca que entalhava douradamente as sufixações. Mas bastam as expressões destas 40 individualidades para logo se revelar uma aura espiritual que as demarca do comum dos mortais. Os quais, devido aos seu infortunado destino, nunca chegarão a ser mortalidades.