Quase cinquenta anos depois regressei a dois lugares onde fui feliz, mas sem que na altura o soubesse, pois só sabemos que somos felizes quando já não estamos entretidos a sê-lo. Um deles estava igual. O outro, tão irreconhecível como se nunca tivesse existido. Eu também estou irreconhecível e, tivessem eles olhos para mim como eu tive para eles, não me iriam reconhecer. Talvez o primeiro, com algum esforço, se lembrasse, depois de conversarmos um bocadinho. Já o outro, tão diferente como a borboleta da lagarta, olharia para mim com indiferença, como se estivesse ali a passar pela primeira vez e nunca lá tivesse sido feliz. Como uma alma que reencarna num novo corpo sem se lembrar da vida anterior, também este velho lugar reencarnou num belo e jovem corpo sem saber que existiu antes e, se não sabe, também não sabe que existi nele.
Faria sentido pensar numa memória mais vívida com o lugar que não mudou, e mais ténue com o que mudou. Mas não. Por muito que vivamos lá fora e olhemos para fora, é sempre cá dentro que tudo acontece, como numa fotografia com fundo desfocado para acentuar o primeiro plano. É cá dentro que tudo ganha e perde significado e, como no teatro, os lugares são só cenários que se montam e desmontam sem nós saírmos do nosso. Daí na minha peregrinação aos dois lugares eu continuar sentado a ver o que já via antes. Apesar de um estar velho e o outro novinho em folha, os cenários que vi em ambos foram o expresso no tão glosado poema, de Joachim du Bellay a Francisco de Quevedo, sobre Roma: procurar Roma em Roma, mas em Roma só ver ruínas. Excepto o Tibre, cuja corrente nunca pára, e que, diz Quevedo, se um dia Roma regou, é a sua sepultura que chora agora. Daí não haver qualquer receio em voltar a um lugar onde se foi feliz. Não é nos lugares que se é feliz, mas dentro de nós, e nós somos portáteis, andamos connosco para todo o lado, embora por vezes também sejamos como uma chave que cai do bolso, mas para isso nem é preciso sair de casa.