10 outubro, 2022

A ALMA RUSSA


Inicialmente entusiasmado com a revolução bolchevique, o filósofo e matemático Bertrand Russell visitou mais de uma vez o país dos sovietes, chegando mesmo a encontrar-se com Lénine. Mas Bertrand Russell tinha tanto de sensato como de inteligente e a pouco e pouco foi percebendo a natureza despótica de tudo aquilo. Mas querendo um dia explicar a Lady Ottoline Morrell por que razão, apesar de tão sinistro e terrível, era o despotismo bolchevique o mais indicado para governar a Rússia, limitou-se a fazer-lhe a seguinte sugestão: «If you ask yourself how Fyodor Dostoevsky's characters should be governed, you will understand». Não sei dizer se é boutade ou se, pelo contrário, uma verdade empiricamente imposta pela antropologia russa. Uma coisa é certa, olha-se para aquela parte da Europa e logo percebemos que navegamos noutras águas. Uma consequência literária disto, mas bem mais do que literária, é um russo estar hoje diante de um livro de Dostoievski de modo diferente que está um francês diante de um livro de Balzac, um português de um livro de Camilo ou um inglês de um livro de Dickens, países que, como todos os outros, e consoante os casos, passaram de monarquias a repúblicas, de ditaduras fascistas a democracias, ditaduras comunistas a democracias, ainda que umas mais musculadas que outras, sem esquecer as inúmeras mudanças na Europa do século XIX. Só mesmo para lá desta nova cortina de ferro é que nada mudou. Sim, morreu o czarismo que vinha desde a Idade Média e o Comunismo que vinha desde 1917. Mas o despotismo é sempre o mesmo, a ausência de liberdade, o peso da autoridade, o culto da personalidade e agora de novo a hierarquia religiosa de mão dada com o ditador supremo. Fosse o grande romancista russo, francês, inglês ou português e os seus livros seriam naturalmente diferentes. Sendo então os seus romances o que são por ser russo, provavelmente também o despotismo é o que é por ser russo aquele povo e a matilha que os apascenta. Gostaria que Bertrand Russell não tivesse razão mas fica difícil conseguir demonstrá-lo.