Na frutaria, ponho os vários saquinhos em cima do balcão para serem pesados, no momento em que a empregada, com quem tenho alguma confiança, começa a dividir um melão em duas partes. Pergunto se é bom e ela diz que daquele não sabe mas que tem sido bom, cortando simpaticamente uma lasquinha para eu provar. Sumarento mas deslavado, com um remoto sabor a melão, a que se junta o seu elevado preço, eis o melão que jamais compraria se antes o soubesse. Mas disse que o levava, decisão da qual me arrependi quando já na cozinha execrava a minha estupidez ao ritmo da mastigação.
Mal saio da loja começo a ouvir, vinda de uma celeste circunvolução da minha consciência, uma voz de harpa sussurando-me as seguintes palavras apetrechadas de asas: "Bravo, que gesto mais lindo o teu! Mesmo sabendo que o melão não prestava, respeitaste o nobre e generoso gesto da empregada, que te deu a possibilidade de comprares ou não comprares em vez de...". Eu, que para usar as palavras de Svidrigáilov a Raskólnikov, já me sentia enterrado em virtude até ao pescoço, percebo, como se tratasse de uma Gnossienne abruptamente estraçalhada por um coro wagneriano, tão angélica voz abafada por um tonitruante barítono irrompido das minhas sulfurosas trevas subcorticais: "Hojotoho! Hojotoho! Heiaha! Heiaha! Hojotoho! Com que então enterrado em virtude até ao pescoço, hein ?! Hojotoho! Virtude... virtude...Heiaha! Não, fizeste isso porque sabias que se não levasses o melão, para a próxima já não te daria a provar, e mesmo com a chatice de teres de levar esse, preferes preservar a liberdade de escolher em vez de te sujeitares aos sortilégios do destino! Hojotoho! Hojotoho! Heiaha! Heiaha!".
Confuso e esmagado pela dúvida, ia lamentando a ausência de VAR para me nortear entre as maviosas palavras de um e acrimoniosas do outro. Que pensar de mim? Serei boa ou vil criatura? Abel ou Caim? James Stewart ou Peter Lorre, Roger Schmidt ou Sérgio Conceição? Resta-me o lado neutro e objectivo da minha consciência, nem celeste nem maligno. Raios, não sou um insecto nem mesmo um chimpazé, sei pensar, compreender e argumentar, qual VAR, qual carapuça. Daí saber que sou bom, virtuoso e digno de admiração, é isso o que eu sou, almejo ser e me orgulho de ser. Ao contrário do miserável insecto ou chimpazé, é com microscópica precisão que, graças aos cristalinos olhos da minha consciência, consigo observar tão bem os meus genes morais como as minhas próprias mãos. A minha consciência não é uma consciência qualquer. É uma consciência sensível, justa e sobretudo bem educada. E quando educamos a nossa própria consciência ela beija-nos quando nos morde, e isso é tão bom.