Admito que possa haver qualquer coisa de psicanalítico na minha relação com o tema da Anunciação. Se trabalhasse num grande museu e pudesse escolher a curadoria de uma exposição de nível mundial, seria um fortíssimo candidato. O tema é sempre o mesmo, mas díspares as suas versões. Veronese dá-lhe uma emoção quase cinematográfica, que não trai o dramatismo da situação expresso por Lucas no seu evangelho. Na de Fra Angelico vemos o anjo, pedagógico, explicar a Maria o seu divino desígnio, percebendo-se a sua perplexidade e esforço para compreender o que se passa. Leonardo oferece-nos uma Maria intelectualizada, parecendo igualar o estatuto superior do anjo. Botticelli esteve bem próximo de pintar um elegante bailado entre uma mulher e um anjo. O ano passado, descobri uma grande Anunciação de Paris Bardon numa temporária a si dedicada, ficando ali preso e com dificuldade em virar as costas àquele tempestuoso e barroco onirismo que me deixou o cérebro baralhado e a lutar contra a absurda ideia de se tratar de um pesadelo. Precisamente o oposto desta versão de Perugino, com os seus dois tipos de delicadeza que nos parece confrontar com o suave e evanescente sonho de um sonho. A natural delicadeza da situação com que Maria é confrontada, que, como lemos em Lucas, a deixa embaraçada, como se a língua de Maria fosse o Espanhol actual. Mas delicadeza essa que, para além da delicadeza das cores e da luz, levou o pintor a exacerbar a silenciosa delicadeza de todos os seus protagonistas: a delicadeza com que Maria movimenta o seu corpo, alinhando ambas as mãos com o seu pé direito. A delicadeza do anjo que nada diz, apenas apontando para o lírio. A delicadeza do pai que apenas envia a pomba, que plana na direcção de Maria de modo a que nem o bater das suas asas perturbe o silêncio da cena, diante de uma paisagem amena onde nem a mais ligeira brisa se ousa vislumbrar.