24 julho, 2023

SEM VERGONHA

Poderia ser uma daquelas comédias de enganos ao jeito do Parque Mayer. Tratando-se de um filme de Fassbinder, A Roleta Chinesa, a hilaridade da cena levar-nos-á para outros caminhos. Marido e mulher despedem-se de manhã, indo cada um deles viajar para uma cidade diferente. Ele sai primeiro, apanhando o avião para Oslo, depois será a vez dela para Milão. Horas depois, reencontram-se na sua casa de campo para a qual se dirigiram com os respectivos amantes. O preciso momento em que o marido e a amante entram no quarto em cujo chão já está deitada a mulher com o amante, é de grande tensão. Mas, de repente, pela natureza cómica da situação, o marido começa a rir, e logo de seguida estão os quatro a rir, mas rir mesmo a valer como quatro crianças que acabassem de ver alguém a escorregar numa casca de banana. Ora, isto não aconteceria se cada um deles chegasse sozinho, encontrando o outro com o respectivo amante pois, neste caso, enquanto um via, o outro seria visto, um julgaria (o juiz) e o outro sentiria a culpa (o réu), um sentiria ressentimento e o outro vergonha. Não sendo esse o caso, podem todos rir à vontade, pois todos os olhos vêem o mesmo através de um jogo de espelhos em que cada um se vê a si próprio no outro, ou o outro em si próprio, fazendo com que todos se sintam redimidos da sua culpa. Se todos são culpados, ninguém é culpado, e por isso ninguém tem que sentir vergonha. Daí irem todos jantar à volta da mesma mesa levados por uma pureza e inocência adâmica que dispensa cobrir a alma com uma parra. Tratando-se de uma cena de um realizador tão político como é Fassbinder, sugiro então a ideia de, infelizmente, isto ser sobre bem mais do que um caricato fait-divers conjugal.