Fala-se em existencialismo e o que vem logo à cabeça são nomes como Heidegger ou Sartre. Mas se recuarmos a 1848, curiosamente também o ano do Manifesto Comunista, vamos encontrar um dinamarquês chamado Søren Kierkegaard a escrever o seu «Ponto de Vista Explicativo Da Minha Obra Como Escritor», de teor claramente existencialista, com passagens bastante musicais para os nossos massificados ouvidos contemporâneos. Se há coisa que repele Kierkegaard é a multidão. A multidão é mentira, repete ele várias vezes, retirando ao indivíduo o arrependimento e a responsabilidade. A multidão é uma abstracção sem mãos, agindo como um todo sem consciência individual. Daí o conceito de indívíduo enquanto oposto ao mundo da política, um mundo temporal mergulhado na agitação quotidiana. E recorre à história para nos dar o caso de Caio Mário, condenado à morte pelo Senado mas sem haver um único soldado que ousasse executá-lo. Porque o soldado, enquanto indivíduo, cá está, tem mãos, as mesmas mãos que se diluem na multidão para lhe dar uma coragem que não tem quando nuas diante da sua própria e irredutível consciência.
Manet pintou quatro versões da execução do imperador Maximiliano, três delas sinópticas, digamos assim para aproveitar a exegese neo-testamentária. Tanto quanto sei, neste caso bastante pouco, nada faz pensar numa relação entre o que diz Kierkegaard e o quadro de Manet, pintado vinte anos depois. Porém, ainda que de modo involuntário, a pintura tem tudo a ver com o que diz o filósofo. Dizia ele que a multidão não tem mãos. Indo dar ao mesmo, dirá o pintor que a multidão não tem rosto, não tem olhos, não tem boca. A mesma boca que ousou cuspir sobre Cristo porque também oculta no meio da multidão. Enquanto um conjunto de cabeças sem rosto ergue uniformemente as mãos para apontar as armas disparadas em uníssono, dando origem à nuvem de fumo no meio da qual caem os corpos fuzilados, há um soldado, este sim com rosto e um par de olhos nele cravado, cujos dedos manuseiam delicadamente a sua arma apontada exactamente para o lado oposto daqueles que caem diante da multidão assassina.
Só por curiosidade, uma das quatro versões deste tema pintadas por Manet, de 1867, encontra-se no belíssimo Ny Carlsberg Glyptotek, em Copenhaga, a cidade de Kierkegaard, mas que o filósofo nunca viu nem poderia ter visto. Mas estou certo que iria achar-lhe piada.